Parei meu carro importado, último modelo, completo e blindado no semáforo e aquele minuto foi o minuto mais longo que até hoje vivi. Parecia que tudo acontecia em câmera lenta, devagarinho e eu podia observar cada cena que acontecia ao redor daquele cruzamento de trânsito da radial leste. Era um cruzamento de dois tempos onde havia o momento dos veículos e dos pedestres e isso foi fundamental para poder observar o quanto somos preconceituosos com nossos semelhantes. O sinal ficou vermelho pra quem vinha no sentido norte-sul e leste-oeste, o cruzamento parou para os veículos, hora dos pedestres poderem caminhar livremente por entre os carros e assim seguirem seus caminhos. Cada um com um semblante ímpar, pude observar alguns deles enquanto regulava o ar condicionado do meu confortável carro para vinte e um graus célcius, apesar de meu poderoso veículo de vinte e quatro válvulas, turbo diesel ser importado, todo o seu painel de controle, que mais parecia o painel de um avião, era em português. Ouvia uma música clássica bem baixinho, pois sempre gostei de ouvir música em baixo volume para assim aumentar a concentração no que estou fazendo, no momento dirigindo e observei. Parecia que tudo acontecia em câmera lenta mesmo, o caminhar das pessoas, o sorriso de alguns, a gritaria silenciosa de ambulantes que aproveitavam o momento para vender algumas bugigangas, os pedintes. O que me faz diferente daqueles irmãos? Pensei. Meu carrão, respondi pra mim mesmo. Bem, também tem minha conta corrente, meu bom emprego, minhas roupas impecavelmente vincadas pelas passadeiras da lavanderia, minha bela família e meus filhos estudando no exterior, tudo isso me torna melhor do que muitos deles... Diferente sim, mas, melhor? Bateram no vidro lateral direito do carro. _ Moço! Quer comprar drop’s? É só um Real! Assustei, pois estava concentrado em observar o vai-e-vem das pessoas. Acenei negativamente com a cabeça. Continuei com meus questionamentos e cheguei a me emocionar quando direcionei o olhar para um deficiente que carregava nas mãos diversos produtos; Tinha doces, panos-de-prato, sacolas de napa, além de alguns adornos de Natal, mais parecia um Centro Comercial ambulante; O Cidadão era um batalhador, tinha uma deficiência nas pernas, ou seria na coluna, que o fazia andar meio agachado, pois, as pernas faziam uma espécie de círculo e não se juntavam, então ele parecia um cowboy ou um motoqueiro que acabara de saltar da motocicleta e não retornara as pernas para o lugar. E ainda assim era o mais articulado dos vendedores daquele cruzamento, conseguia “empurrar” suas bugigangas para os motoristas com alguma facilidade, não sei se pela sensibilização das pessoas ou pelo talento de vendedor que possuía. Enquanto isso, no outro semáforo, um menino de mais ou menos oito anos de idade esgueirava-se pelos veículos pedindo doações de natal com sua caixinha revestida em papel de presente; Tinha uma figura franzina e esguia, o que mexia com as pessoas que com o espírito de Natal vivo em seus corações, esticavam seus braços ofertando algumas moedas para ele que com um largo sorriso de agradecimento, retribuía a oferta com uma gratidão verdadeira estampada em seu semblante infantil. E percebia em alguns motoristas uma certa indiferença para com aquela cena. Olhares difusos. A irritabilidade de alguns com as batidinhas no vidro do carro, a insensibilidade às mãos estendidas implorando caridade. A falta de amor ao próximo. Me enquadrei naquele rol de indiferentes, pois, o que estava fazendo que me tornasse diferente deles? O que me tornava melhor que os demais? Pensei, pensei e cheguei a conclusão de que sou mais um dos indiferentes. Continuo andando de carro importado, blindado, com os vidros fechados. Não faço nada para melhorar a vida dos outros. Pra falar a verdade não sei nada da vida dos outros e nem tão pouco estou fazendo absolutamente algo para melhorá-las. Tudo o que tenho feito, tão somente favorece aos meus interesses e dos meus próximos, mais próximos. É fácil delegar a responsabilidade pelas mazelas da vida aos governantes, excluindo-me totalmente desse sistema frio que segue pelas paralelas materiais, onde números estatísticos comandam as ações governamentais e o sentir é engessado sem lugar. Num flash de memória, alguns momentos de minha infância percorreram os filetes ressecados pelo tempo de minha história. Minha mãe raspando com uma colher de metal a meia-banda de uma maçã que ela intercalava entre mim e meu irmão mais novo. Um momento de lembrança de minha infância que brotou naquele instante no sinaleiro. Não sei porque me veio tão vivo no pensamento aquele momento que já acontecera a tantas décadas. Forcei mais um pouco o olhar e senti a relação da simplicidade, do descomplicar da vida, naquelas vidas que desfilavam pela frente do meu luxuoso carro. Percebi o quanto frio e fútil é a indiferença natural das pessoas que, por vezes, encontram o sucesso pessoal e profissional independente dos meios, justificando-os pelos fins. Um choque na memória. Um despertar pra vida enquanto ainda a tem. Uma nova maneira de enxergar meu semelhante. Um renascer verdadeiro. _ E aí patrão vai uma rosa pra patroa? Me interrompeu um senhor de meia idade que com um toque duplo no vidro escurecido pela película fumê, me trouxe de minha introspecção. Com um toque no controle elétrico, abri o vidro. Dessa vez abri totalmente, diferente das anteriores que no máximo abaixava o suficiente para receber um encarte das lojas de departamentos. Abri o vidro até em baixo e olhei para o semblante queimado do sol daquele irmão. Tentei saber, em seu olhar, sua história, seus anseios, suas necessidades e seus pensamentos mas apenas entendi que cada rosa custava um Real e que comprando três só pagaria duas. _É três por dois patrão! Comprei todas as rosas que trazia nas mãos. Chamei o vendedor de pirulitos e drop’s e também arrematei as duas caixas que ele vendia. Assim fiz com o Shopping Center ambulante e adquiri todas suas bugigangas e em poucos minutos meu carro estava abarrotados de compras feitas naquele sinal. Não sei o que me deu, só sei que a muito tempo não me sentia tão feliz. O sinal abriu e engatei a primeira marcha e saí. Abaixei todos os vidros do meu carrão, desliguei o ar condicionado, tirei o CD de músicas clássicas e coloquei um de MPB, aumentei o som e me atrevi a cantar uma das músicas. Dirigi até um albergue da prefeitura e doei todas aquelas aquisições pra eles. Outro momento de alegria no mesmo dia. Já eram mais de cinco horas da tarde e estava na hora de regressar pra minha casa. Outro semáforo se aproximava. _ Que carrão fera doutor! Me exclamou um guri de uns doze anos com uma caixinha de Natal nas mãos. _Tem umas moedas pra minha caixinha? Perguntou com um sorriso simpático estampado na face. _ Tenho não moleque! Respondi com outro sorriso no rosto. _ Mas tenho uma notas, serve? _ Melhor ainda, me respondeu o sorridente menino. Tinha passado no banco e retirado um dinheiro para as despesas da semana.Coloquei tudo naquela caixinha e senti no coração que estava fazendo a diferença pro Natal de uma família. Daquele dia em diante mudei meu posicionamento quanto as coisas da vida. Percebi o quanto posso fazer pelos meus semelhantes e que depende apenas de mim. Não importa o que fazem os outros ou os governantes, preciso colocar água em meu bico e auxiliar no apagar do incêndio da floresta fazendo minha parte.