Já passavam das 6:00 hs da manhã e a chuva fina lavava a poeira levantada na noite passada, pelo ritual da maturidade. Ao chegarem aos doze anos, todos os indiozinhos da tribo, precisavam passar pelo ritual da fogueira, que mais na frente, traremos para este livro. Tinha sido uma noite daquelas. Uma festa. Muita cantoria, comida a vontade e dança, muita dança. A alegria fluía no semblante de todos, adultos, crianças e os velhos da tribo. A experiência dos velhos anciões sempre foi valorizada entre os Tupis. Havia respeito e admiração por eles e as crianças sentiam prazer em ouvir suas fantásticas historias de guerra e paz, natureza, animais mágicos e a força invisível de Deus. As mães índias prepararam bem seus curumins para aquela tão esperada noite, pois daquele dia em diante, passariam a ser guerreiros de apoio aos caçadores da tribo. Auxiliares de confiança dos mais experientes e porque não, guerreirinhos também.
A chuva fina que insistia em cair como num manto de luz na manhã da selva verde e virgem, longe da civilização urbana, pois ainda não conheci histórias de homens mais civilizados do que os índios Tupis, verdadeiros guardiões da verdade, honestidade, disciplina, respeito e amor aos seres vivos, todos os seres viventes da terra e do espírito. Então ainda examino o que verdadeiramente é ser civilizado. O que é ser evoluído. As gotículas da chuva cobriam as folhas das árvores e os passarinhos se escondiam sob as imbaúbas, pelas folhas largas que possui. A floresta estava num silêncio só. Não se ouvia nem um só ruído, nada além da água caindo e o soar de uma leve brisa que penteava as palhas das palmeiras e as folhas das sororocas. Uma beleza de se admirar, mais uma fotografia do álbum de Deus, uma tela tão perfeita, que nem mesmo Da Vinci poderia imaginar e pintar, coisas dos encantos da natureza.
Aram observava aquele momento ímpar que Tupã estava proporcionando para ele. E olhava cada centímetro da imagem, as ocas fechadas por causa do frio, as brasas da fogueira ainda enfumaçada, as galináceas se acordando e cuidando das crias, as palhas balançando como que num balé celestial, a chuva que agora mais parecia com uma garoa fina, a água escorrendo pelos troncos das árvores e pelos regos que desenhavam pelo chão da ocara formas abstratas onde Aram viajava pela imaginação formando imagens com sentido para aquele dia e os tímidos sons que se iniciavam pela manhã no despertar da floresta.
As primeiras índias começavam a aparecer nas entradas das ocas. Se espreguiçavam e faziam seus agradecimentos por mais aquele dia. Faziam individualmente a saudação ao Sol e sussurravam palavras mágicas que garantiam um dia de fartura e alegrias, onde teriam seus filhos guarnecidos dos perigos e seus maridos, guerreiros Tupis, vitoriosos para poderem suprir suas famílias com saúde e garantir a segurança da tribo. Pediam ao Sol saúde, paz e prosperidade além de força e coragem para trabalhar, dando aos curumins da tribo o exemplo que todo o pai e mãe deve dar aos seus filhos. Para os Tupis o exemplo dos pais e dos mais velhos da tribo era o maior tesouro que poderiam dar as crianças da tribo. Quando havia fogueira e sempre havia fogueira, todos sentavam-se ao redor e entre um assado e outro, ouviam as histórias mais fantásticas dos velhos. Batalhas e contos espirituais, vitórias e ensinos Divinos, onde os exemplos eram fortalecidos em suas memórias e cresciam se fortalecendo cada vez mais no propósito de honestidade, verdade e simplicidade. E durante as narrações das histórias, os olhinhos dos curumins brilhavam e a imaginação viajava em planos infinitos de consciência e seus espíritos se deslocavam e entravam nas histórias se encarnando como personagens reais, assim as noites na tribo não se repetiam e todos eram felizes e prósperos, num crescimento imensurável de amor e união.
A fumaça das brasas já começava a se reerguerem com as mexidas das índias que iniciavam os preparativos do primeiro alimento do dia. Tapioca, beijus, dentre outras guloseimas para o desjejum dos meninos e dos outros, também já estavam sendo preparados pelas dedicadas mães Tupis. Aram tudo observava em silêncio e atenção, estudando o desenho que o dia estava lhe proporcionando e ele sabia observar as coisas de Deus. E observava com carinho. Carinho de pai.
Tantas foram as vezes que Aram em seus agradecimentos à Deus, lembrou em suas preces daqueles pequenos herdeiros da cultura Tupi, pedindo prosperidade, saúde e felicidade aos seus meninos e meninas, as suas famílias, aos seus guerreiros, fartura para a tribo e acima de tudo, paz e harmonia para todos. E naquela manhã, ele sentia que algo de especial ia acontecer... e observou... observou... se concentrou e sentindo tocar em sua face os primeiros raios de Sol, sorriu.
Todas as atividades daquele dia, aconteceram de uma forma diferente, não foi como nos outros dias, tudo deu certo, até mesmo a panema que insistia em perseguir o melhor de seus caçadores, deu uma trégua e ele trouxe muita caça, e cantaram e dançaram por isso também. O dia foi só alegria. E a noite chegou...
O dia ainda não tinha acabado e a Lua surgiu exuberante, redonda como um olho de tucunaré mas bem maior. Naquela noite Aram não se continha em alegria, uma energia circulava seu corpo e em especial seu coração de uma maneira diferente, sentia um amor tão grande que parecia que flutuava. E a Lua brilhava radiante.
Quando Aram chegou ao centro da ocara, já o estavam esperando. A fogueira acesa e os finos gravetos de Angelim e pau de corda que são ótimos para manter o calor por terem cerne denso e por isso não precisar de tanta lenha, pois os Tupis faziam o possível para cuidar da mata como se cuida da mãe. Toda a tribo reunida. Com pequenos espetos feito de gravetos de itaúba e aroeira assavam os lambaris pescados durante o dia. As crianças esquentavam umas frutinhas vermelhas de sabor adocicado e azedo que depois de aquecidas ficavam deliciosas. Os curumins adoravam e ficavam com as bocas borradas pela tinta que se desprendia pelo calor do fogo. Os índios adultos se acomodavam no chão junto de suas companheiras, diferente de outras tribos, os Tupis não discriminavam as mulheres e compartilhavam os momentos juntos. Os guerreiros podiam ter até três mulheres desde que pudesse sustentá-las e que fosse sempre fiel às todas. Dormiam juntos na mesma oca que continha uma divisão em forma de biombo para separar os pais das crianças, preservando assim suas memórias infantis quanto ao relacionamento de homem e mulher. Então lá estavam as famílias reunidas em volta da pequena fogueira que as vezes perdia em luminosidade para a intensidade da luz da Lua, aguardando Aram chegar e trazer seus ensinos para todos deleitarem-se.
Aram chegou, sentou-se a com um semblante amoroso balançou positivamente a cabeça saudando a todos. E todos sentiram a energia daquele momento e um silêncio duradouro reinou. Alguns minutos passaram-se e então falou:
_ A Luz do pai Sol brilha por todo o dia e a mãe Lua o acompanha refletindo sua Luz pra todos nós. Ele nunca esquece de nós. Tem dia de chuva que não o vemos, tem dia de nevoeiro que não o vemos, tem a noite em que não o vemos mas ele está sempre lá nos observando e cuidando de nós. Firme em seu lugar, nos dando equilíbrio aqui na terra, independente de estarmos ou não pensando nele, ele está ligado em nós. Saímos para a caça e ele clareia as matas pra nós podermos ver os animais, saímos pra pescar e com a claridade conseguimos mirar e cravar nossas lanças pra poder saciar a fome. Plantamos a maniva que cresce todo dia um pouquinho, brotando e florescendo. Quando a gente precisa lá está a mandioca madura pra gente ralar pra fazer beiju, farinha e a bebida sagrada dos espíritos, o caá. Quando é noite e o pai está cuidando dos outros nossos irmãos, nossa mãe Lua carinhosa e cuidadosa, vem e nos cobre com seu manto de luz em forma de sereno na madrugada. Estamos sempre sendo olhados por nossos Pais. O que precisamos é estar ligados neles para aumentar a claridade em nosso caminho e manter-nos seguros, livres das jaguatiricas, das cascavéis e das tucandeiras pra só sentirmos dor quando for necessário, não por causa de descuido. Não estamos aqui nessa mata para sofrer mais do que o necessário, por isso precisamos saber por onde andamos e o que estamos fazendo com nossos pensamentos. Na dúvida, pensemos no nosso pai e na nossa mãe que estão sempre nos guiando pelos caminhos da terra.
_ Quando nosso chão já havia sido criado, Tupã começou a semear por toda a parte do planeta, sementes de tudo o que poderíamos precisar. Mas ainda não havia luz e nem água que mais na frente formaria os mares e os rios e com o futuro movimento das marés traria os ventos e assim a vida teria seu início. Depois de ter colocado no solo de tudo um pouco, Tupã enviou pra cá o grande Porumã, um espírito em forma humana, o primeiro homem na terra. Veio reinar sobre o planeta e lhe foi dado a missão de iniciar toda a geração. Quando já havia crescido as matas e os peixes do mar já haviam se multiplicado, Porumã sentou-se sobre uma grande pedra próximo a uma fonte de água cristalina, contemplou a beleza da natureza daquele lugar e sentiu que ainda faltava algo para continuar o movimento da criação. Concentrou-se no Pai, fechou os olhos por alguns instantes e quando os abriu, percebeu um movimento na vegetação que ficava na margem oposta do pequeno lago que se formava naquela fonte. Dali saíram duas pequenas corsas, que hoje conhecemos como veados e outros pequenos animais foram aparecendo até que após alguns minutos já haviam dezenas de animais de várias espécies bebendo daquela fonte.
_ Mas de onde surgiram aqueles animais, meus pequenos curumins? Perguntou Aram aos pequenos indiozinhos que o ouviam com tanta atenção que seus pequenos olhos negros nem piscavam. Um silêncio perdurou por um tempo.... E Aram se levantou e falou: _ Tupã nos enviou para povoar a terra em forma de pequenos animais até que houvessem seres humanos para abrigar nossos espíritos.
_ Mas todos os animais tem espírito Aram? Quis saber um adolescente recém aprovado na prova de coragem com as tucandeiras.
_ Essa é uma outra história. Inteligentemente disse Aram, deixando a todos com uma "pulguinha atrás da orelha" de querer saber mais a respeito das coisas de Deus. _ Conto numa outra Lua com a fogueira mais forte. Aram sabia como prender a atenção de todos.